“... Sob a Tua Palavra lançarei as redes" (Lc 5.5b)


'O Teu caminho, ó Deus, é de santidade.

Que Deus é tão grande como o nosso Deus?

Tu és o Deus que opera maravilhas e, entre os povos, tens feito notório o teu poder" (Sl 77.13-14)


sexta-feira, 14 de novembro de 2014

'500 anos de Brasil na visão de uma abelha indígena'

(A chegada do homem branco no Brasil na visão de uma abelha indígena, escrito em 2000. Hoje encontrei em meio aos meus arquivos e decidi publicar para os amigos do meu blog)

ZUMBIDO DE DOR

            Era uma tarde bonita e ensolarada e o campo apresentava-se salpicado de flores. O colorido e o perfume impregnavam o ambiente de poesia e fantasia, alastrando um encanto contagiante. Parecia que a natureza tinha se adornado para uma grande festa. No ar, uma atividade frenética regada por um zumbido alto, rápido e correspondido.

De repente, alguma coisa mudou. Uma agitação diferente abalou a rotina daquela tarde festiva. Uma grande embarcação que se avistava no horizonte se aproximava lentamente. Dezenas de homens corriam transtornados pela praia e, muitas crianças, assustadas, choravam se aninhando nos braços de suas mães.

O murmúrio cessou por um instante e um silêncio ameaçador tomou lugar, às vezes quebrado pelo sussurrar de alguém e o farfalhar das folhas que acusavam o medo. Parecia uma eternidade. Os olhos se procuravam. Havia espanto e alarme.

A natureza parou por um momento. Nossas ancestrais, porém, segundo soube, retornaram rapidamente a seus afazeres. Havia muita flor, muito néctar e muito trabalho pra se fazer. Desconheciam o quanto aquele instante iria alterar o curso de nossa existência.

Os homens, entretanto, inexplicavelmente, permaneciam calados, aguardando. Bem, para eles, dizem que as conseqüências também foram cruéis. Não sabíamos, mas para todos nós, aquele fugaz silêncio prenunciava a morte, a destruição e a fome.

Desde então, quinhentos anos se passaram. Quanto tempo! Quanta esperança destroçada! Quanta luta perdida!

Dizem que aqueles homens chamavam-se portugueses e eles trouxeram outros, que trouxeram outros, outros e mais outros..... que fizeram muitos outros....

Desde aquele dia, muita coisa mudou: as tradições, as festas nas luas cheias, as cerimônias, as danças ao entardecer, a busca e a luta pela sobrevivência.

Com eles, vieram também árvores novas, diferentes, com novas flores. Trouxeram ainda primas nossas, de outras terras, com outra maneira de ser, de fazer as coisas, diferentes na cor da pele, no falar e no pensar. Abelhas como nós, com famílias, que cuidavam com respeito de suas crias. Porém, tão diferentes!

Um dia, encontrei-me com uma delas numa flor e, então, tentei conversar um pouco, mostrar camaradagem. Entretanto, elas são de pouca prosa. Comentei, cordialmente, que estava um dia lindo e ela nem me respondeu. Quanta pressa, preocupação! Mas eu até entendo. Passamos por momentos difíceis, com pouco néctar para sugar e alguns deles com um gosto tão ruim. Dizem que é veneno chamado agrotóxico! 

Estas priminhas nossas são... desculpe-me, gananciosas. Mas dizem que há motivos em sua história que as levaram a armazenar grandes quantidades de alimento. Parece que algumas vieram de um lugar em que há períodos que não podem sair de casa porque é muito frio e isto matou no passado muitos parentes delas. Outras vieram de um lugar que os homens destruíam os ninhos das mais amistosas. Deve ser por isso que são afobadas, assustadas, medrosas. Levantam-se muito cedo. Quando chegamos nas flores quase já não há alimento. Elas já levaram tudo.

Realmente, são muito estranhas... Dizem também... (perdão, estou parecendo uma fofoqueira...) que a rainha quando tem um filho não dança! Não comemora! Que horror! Após ter um filho, vai depressa procurar outro berço para botar outro e mais outro e mais outro... A nossa rainha, não! Quando ela tem um filho, que festa! Dá gosto ver! É tão lindo! Ela festeja, comemora e todas as nossas companheiras festejam junto a nova vida que está chegando.

Coitada das nossas priminhas! Vieram prá cá e são escravas dos homens brancos que as trouxeram. Elas estocam grandes quantidades de mel que é extraído por eles, muitas vezes sem nenhum respeito. Muitos destes homens atacam os ninhos, queimam, destroem tudo, assassinam os filhotes. E não adianta se defender. E elas sabem fazer isto melhor do que nós.
          Dizem que até a proteção de suas casas é retirada. Chamam de própolis. Por conta disto, passam o maior frio e perigo em certas situações. Fora a fome...

Na verdade, todas nós temos sido vítimas de homens gananciosos que, pra produzirem mais, usam venenos muito poderosos.

Não posso deixar de falar que há também homens generosos, chamados de apicultores, que nos tratam melhor. Fornecem abrigos novos, cheirosos e lá somos bem tratadas.

Porém, o mais duro e triste é o que estão fazendo com as nossas matas, nossas flores. Eles arrancam tudo com machado e máquinas barulhentas. Queimam, destroem, por onde passam. Jogam sujeira, veneno nos rios, nas lagoas. Muitas vezes, temos que voar muito longe para conseguir água e, às vezes, ela é tão suja que nos dá disenteria. Temos dificuldades em encontrar flores e até locais para novos ninhos.
            O que fizeram deste lugar? Cadê as nossas flores, a alegria do zumbido pelas manhãs ensolaradas? O que fizeram? Por quê? Quinhentos anos de muitas histórias!
            Deixem que continuemos nossas vidas, visitando nossas flores, ajudando-as a se reproduzirem pela polinização. Sabemos fazer um alimento muito doce, muito saboroso. Sabemos fazer remédios preciosos que poderão ajudá-los. Podemos compartilhar o resultado dos nossos conhecimentos e habilidades. Mas parem de nos tratar tão mal!
            Que este zumbido de dor chegue aos vossos ouvidos, que este zumbido desperte o vosso coração para a beleza da natureza e que abra os seus sentidos para o colorido e o perfume das nossas flores, do nosso céu, do nosso Brasil. Se você foi tocado por esta história real e triste, una-se a nós e transformemos este zumbido de dor num zumbido de esperança de uma nova história, de um novo país.   

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Uma palavra aos cristãos:
 Deus Criador, na Sua infinita generosidade nos proporcionou um ambiente magnífico em beleza, cor, perfume, textura, som, sabor e nos capacitou com sensibilidade (visão, olfato, tato, audição, paladar) para desfrutar e cuidar de tudo isto (Gn 2.15). Entretanto, o homem tem abusado de modo desregrado, egoísta e inconsequente deste privilégio. O resultado é uma natureza que geme e suporta angústias até agora, aguardando como nós a redenção deste corpo corruptível (Rm 8.21-23). 
Que o nosso Deus Criador e Sustentador, desperte e oriente o Seu povo para administrar com responsabilidade e sabedoria o que ainda nos resta de modo a tornar a vida (para nós e nossos descendentes) menos penosa.





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