Escrito pela minha filha, Deborah
Era um dia ensolarado como a maioria dos dias de prova, que teimavam em me lembrar que eu queria era estar na praia. Eu adquiri o habito de aguardar a chegada desse momento opressor e malvado (porém necessário) no jardim da faculdade. Era um ambiente agradável: verde, flores, passarinhos, sol e ... Eu! Cercada por infindáveis livros, resumos e decorebas de último instante que, em certa parcela, seriam fatalmente eliminadas do meu cérebro tão logo eu entregasse a prova preenchida nas mãos do professor. A verdade é que, às vésperas das avaliações, após uma noite mal (ou não) dormida, aquela papelada toda ao meu redor era mais um enfeite do que uma fonte de conhecimento. E havia sempre a esperança de que elas caíssem em minha corrente sanguínea espontaneamente e, sem querer, se alojassem em meu cérebro. Mas, confesso, era um alívio estar com eles, como um viciado que se agarra em suas últimas tragadas eu não me desapegava das anotações com facilidade.
Em meio aos meus devaneios e tentativas vãs de absorver novos conceitos, iniciou-se, certa vez, um discreto barulho perto de mim. Melódico, insistente... Irritante! Virei-me para ver de onde vinha aquele desacato ao meu pavor estudantil e me deparei com um sorriso simpático de um senhorzinho varrendo o chão. Retribuí o sorriso automaticamente e, por alguns instantes, percebi o quanto eu, não raramente, perdia a noção do que me cercava. Ali, em meio a um lindo jardim, havia um simpático senhorzinho de mais ou menos 70 anos que sorria pra mim, com seus dentes alinhados por não serem seus, a cabeça forrada de cabelos brancos e uma expressão de quem já trabalhou muito e que, na minha interpretação, dizia apenas: “Oi, eu varro o chão em que você pisa! Posso sorrir pra você?”. Com o tempo, passei a procurar por aquele sorriso que sempre se destacava no jardim, antes do corredor da morte pré-prova. Era como se tivessemos uma cumplicidade silenciosa. Eu, então, passei a gritar “oi, tiiiiiiio!” toda vez que o via, de longe, de perto, passando de carro, de cima do prédio... A isso ele respondia um respeitoso: "Oi, 'fia'!". Isso provocava certa estranheza em pessoas mais recatadas, mas eu não me importava. Ele era o “meu-tio-que-varria-o-chão-e-sorria”!
Com o tempo, conversamos algumas vezes. Ele perguntou sobre o meu curso e percebi que ele não entendia exatamente quais eram os passos que deveriam ser tomados para que alguém fosse médico e nem para que alguém não passasse a vida com um sorriso fácil engatilhado...
A partir do quarto ano, eu quase não ia mais pro campus, porque nossas atividades quase se restringiam ao bloco hospitalar. Quando eu ia "passear" pelas áreas do ciclo básico, procurava aquele barulhinho da vassoura feita de folhas esbarrando no chão para ver se encontrava aquele senhorzinho simpático agarrado ao barulho. Às vezes o encontrava. Às vezes não. Às vezes trocávamos algumas palavras. Às vezes só um “Oi, tio”.
E, então, em uma das últimas vezes que vi o Sr. João ou José (eu nunca lembrava qual era o nome correto e tinha vergonha de perguntar de novo e de novo... A verdade é que ele me atendia pelos dois nomes, e eu ainda preferia chamá-lo de “tio”) ele me falou, entusiasmado, que tinha sido escolhido pelos formandos de Direito para ser o funcionário homenageado! O sorriso que eu senti estampar meu rosto naquele momento não foi do tipo: “Ah, fico feliz que você tenha conseguido pegar um bicho de pelúcia numa máquina projetada para que isso não ocorra”, mas foi um sorriso que saiu do mais profundo do meu pâncreas, do musical som das minhas artérias e eu quase que, do alto dos meus 1,85m, peguei o tio e o joguei pra cima! Era óbvio! Como não pensaram nisso antes? Tinha que ser homenageado! Nem todo mundo varre o chão ou varre a vida com a mesma graça e autenticidade, cheio de sorrisos. E tanta gente faz tanta coisa aparentemente “grandiosa” e , no fundo, é tão pequena que jamais varreria mesmo como o tio varre! A grandeza dos pequenos atos, quando executados com cuidado, chega a ser difícil de entender.
Bom...Parabéns Sr. João... Sr. José... Tio! Eu não sei seu nome, mas seu rostinho sorridente ainda hoje me tira um sorriso quando me deparo com minhas torrentes de memórias e, então, paro pra pensar no que realmente importa. O meu temor mesquinho é varrido e permanece distante, até o próximo vento frio cheio de folhas. Mas a vida, afinal, é sempre uma questão de varrer o que deve ser varrido e manter um sorriso no rosto :)
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Sou suspeita, confesso. Mas como gosto de ler as idéias de minha princesinha Deborah. Elas me emocionam e me levam a pensar. Que possamos valorizar os tantos 'tios' que, anonimamente, tornam a nossa vida bem mais bela e perfumada e, quiça, sonora... Lembrei-me do texto que escrevi: 'Quebre o vaso e desfrute do extraordinário'
http://destilardosfavos.blogspot.com.br/2012/10/quebre-o-vaso-e-desfrute-o.html
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